sábado, 9 de março de 2019

                             Não ligues ao que leste, António.


Carta aberta ao meu amigo António Alves Augusto;
que partilhou comigo a guerra colonial em Angola, durante dois anos, ambos como alferes milicianos.
Caríssimo Augusto,
a propósito do teu telefonema, para teu melhor esclarecimento resolvi escrever este texto. Não ligues ao que leste, ouviste ou viste; é tudo “fake”. Aqui o Seixal está em paz, acolhedor e recomenda-se: nada de assassínios, de violadores, ladrões e outros, e outras coisas que tais. Nada de tiros, facadas ou dentadas.
Lembras-te do Seixal que eu te contei, nos longos dias de Angola da tropa obrigatória. A gente de que te falei é ainda a mesma, podem ser outras as caras, passaram cinquenta anos, mas é planta do mesmo chão.
Ainda a propósito do teu reparo há aqui quem reclame do presidente da câmara municipal, e do presidente da junta de freguesia, uma tomada de posição que esclareça que no Seixal povoação sede do concelho, não aconteceu nada de menos recomendável. Comerciantes receiam que o número de visitantes diminua ainda que o rio continue com as marés, as meninas alindem o sorriso, o sol faça o seu colorido pelas ruas e pinte o reflexo dos barcos ancorados; e protestam e exigem uma reparação nos telejornais. Para que servem os eleitos? Eles que esclareçam que o sangue derramado é de Corroios, da Amora, das Paivas, da Cruz de Pau ou da Quinta da Boa-Hora!
É evidente, Augusto, que o presidente da câmara, ou o presidente da junta (ainda por cima da “união de juntas”), não pode fazer tal correcção. Tás a ver um a dizer “aqui no Seixal, sede do concelho nunca tal acontecerá, venham visitar-nos, as selvajarias ocorridas não têm nada a ver com o Seixal (leia-se a antiga vila)”. E a propósito, num transporte irreflectido de sinceridade talvez até dissesse o autarca, “para que fomos dar, ao Seixal, o nome de cidade?…”
Imagina, Augusto, um outdoor: “garantimos segurança a quem visita o velho povoado do Seixal, quanto ao resto…”
O autarca não pode e eu se estivesse no lugar dele, faria o mesmo, O presidente é presidente de todos, não pode fazer discurso discriminatório ou equívoco. Mas eu posso. Um seixaleiro pode. Pode dizer “aqui não!” com a mesma convicção de quem dizia “esse não!” (a propósito do bolsonaro)… mas com melhores resultados.
Isto sou eu a falar contigo, e tu conheces-me: eu não acho que o resto do concelho seja composto por vândalos, mas o Seixal é o Seixal. Lembras-te, tu a falares da tua Vila Real-de Trás-os-Montes e eu dos meus quinhentos metros de comprido (da fábrica à oficina do Zé Silveira) por oitenta metros da maré à barreira onde se encosta a rua de trás. Tão pacífico, O Seixal, que até se fechou a prisão e se venderam as grades ao ferro-velho; por falta de inquilinos e, quando os houve era gente de pilha-galinhas, como o Ladrão-Alto, o Pinho ou o Texugo, este por andar a gritar no Largo da Igreja “morra o salazar”… e o Quirino à espera dos noivos, por causa dos bolos.
Em tão pequeno território delimitado a norte pelo rio, não se pense que vivia pouca gente. Só colectividades eram oito, eu contei-te Augusto: três delas desportivas, três recreativas, uma cooperativa de consumo com mais de quinhentos sócios e um clube de
campismo. Oito bibliotecas e um cinema privado. Entre directores, seccionistas, músicos, atletas, actores, põe nisso umas quatrocentas criaturas. Tanta gente (marido, mulher, filhos avós, sogros) por cada casa, que mais à vontade de espaço se estava fora de porta. Homens operários, mulheres operárias, e mais gente do mar. Quatrocentos com reuniões semanais, que discutiam, propunham votavam e eram eleitos. Esta banalidade de vida, das colectividades, por contraste, fazia sobressair a ditadura, onde não havia debate, nem eleições, nem opinião diversa.
Lembras-te Augusto de o Coronel perguntar de onde éramos?
− Vila Real de Trás-os-Montes” – respondeste.
− Gente verdadeira, gente frontal, rude, mas de boa cepa, gente portuguesa” – comentou o oficial superior.
− Seixal!” – respondi na minha vez.
− Isso não é tudo vermelhusco ó nosso alferes?
− Gente mais civilizada, meu coronel… mais culta.
Tão apertados estavam, casas pequenas, ruas estreitas. Aprendeu-se a viver sem pisar. A ordem espontânea das coisas, a racionalidade necessária, a entreajuda praticada na fábrica de centenas de operários. Os camaradas pescadores (na tropa é que se dizia, lembras-te Augusto, colegas são as putas! Aqui somos camaradas!), o que lá se aprende, no mar, o espaço apertado e perigoso de um barco que pesca ao largo e que só vem a terra pelo Natal e pelo São Pedro. Muito devotos a S. Pedro aqui no Seixal. Com muitos santos na procissão e foi assim todos os anos menos um porque um excessivo e zeloso presidente da Câmara, no tempo da República, fechou na cadeia os santos e os andores. Lá está! pouco uso se dava à cadeia para encarcerar gente de carne e osso: moradores pacíficos, a viver sem pisar. A mãe na fábrica, o pai na fábrica, os avós no cemitério ou ainda na fábrica ou no mar: vira-te!
Alguns, poucos, da pequena burguesia, como os meus pais, classe média-baixa como se diz hoje, mais uns artesãos, mais os caixeiros e uns funcionários. E um regedor, e dois polícias, um, o chefe do outro, o Caldeira, com duas filhas boas, ironia do destino.
Ninguém joga, ninguém brinca sozinho, e dança: houve tempos em que as da Sociedade Velha eram as mais giras, depois mudou, passaram as ser as da Sociedade Nova. Os da “Velha”, da Timbre, eram e são os Franceses (Sociedade Filarmónica Democrática, no nome mais completo); os da “Nova”, da União, intitulam-se de “Os Prussianos”. Rivais, cada uma com a sua banda de música. No 25 de Abril, há 45 anos, saíram à rua a tocarem juntos. A cooperativa era de nome completo: Cooperativa Operária de Consumo 31 de Janeiro de 1911!
Em cada recanto um jogo da bola, sem árbitro. Faltas, penalties e offsides, tudo decidido em consenso. Mais uma aprendizagem de civilidade: sem os outros não há jogo!
Cresciam os filhos, casavam, mais apetrechados para o emprego, melhores salários, gente nova, necessidade de mais ruas e mais casas. Aumentou o Seixal para o Bairro Novo”, para lá do cemitério que sempre se situa fora de portas. Na parte alta cresceu o bairro, como outro Seixal, feito primeiro ao comprido e depois alargado. Casas de banho e outros luxos, até um prédio com elevador, e depois vivendas. Jovens que
estudaram, portadores de mais informação, melhores empregos, a maioria deles um pouco menos cultos do que os pais.
Este povo que te descrevo, Augusto meu amigo, é o de há quarenta ou cinquenta anos. Já não há operários e os pescadores contam-se com os dedos. A cooperativa fechou. Mas o rio permanece, o sol nasce e põe-se do mesmo lado e provoca as mesmas sombras, e as mesmas cores: azul cinza pela madrugada, cerúleo ao meio dia, ouro e prata as águas a caminho fim do dia. E da virada do vento e do nevoeiro. E as palavras nas mesmas ravessas e travessas. Tudo radiações, elixires, perfumâncias… aí é que bate o ponto. A questão é essa. A gente já não é a mesma, muitos morreram, mas o ar ficou (a respiração deles). É coisa que ficou agarrada às paredes. Contaminam tudo: os filhos dos que estavam cá, os filhos deles e os que chegam de outros lados.
É como um baptismo mágico!
Vou-te escrever, a seguir, uma lista reduzida de algumas das alcunhas, da gente de que te venho falando e tu dir-me-ás se gente com tais alcunhas alguma vez poderia cometer, as atrocidades que foram relatadas na televisão:
Eugénio da Ratada, Xanuá, Come-Nada, Fadista, Texugo, Zarolho, Achorda, Alfinetes, Afasta-Afasta, Arroz-Doce, Bald’água, Bate-asas, Berruga, Bicho-mau, Boguinhas, Boca Grande, Xico Burro, António Burro, Cabeça de Bico, Cafeteira, Cága-Apitos, Cagão, Capachila, Xotinha, Caralha-Sem-Tempero, Caralho-Sem-Pescoço, Chumbaca, Chouriço, Coça, Dois olhos, Estraga, Fato Preto, Fominha, Ganança, Gadelha, Góni, Júlio dos Ovos, Joaquim da Balbina, Lambão, Lobisomem, Macarrão, Má-Olha, Mamalhuda, Mijão, Mosca, Pandulha, Pardal, Pé-de-Moca, Pêssego, Pintelho, Rata, Rateta, Santola, Slija, Slanca, Tapum, Toca-o-Hino, Vaca Mula, Vai-te Vai-te, Góni.
Leste Augusto? O “Bicho-Mau”, aliás uma família, eram só malucos não faziam mal nenhum, e o “Lobisomem” nunca assustou ninguém. Só não ponho as mãos no lume pela “Afasta-Afasta” que conheci mal, era um GNR com mau feitio, dispersador de ajuntamentos.
Até os escuteiros, nos tempos de agora abriram casa em quatro lados, como abelhas atraídas por papoilas.
Despeço-me com um abraço e se o teu genro continua a chatear a tua filha, manda-o para cá. Uma semana ou duas no máximo deve chegar; digo duas porque convém que ele apanhe as águas-grandes. Depois vendo a tábua das marés eu digo-te.
Outro abraço.

Eduardo Palaio  ( Também tive a alcunha de marroquino )