A PROPÓSITO DA CARTA ABERTA AO ANTÓNIO
Brilhantemente escrita pelo meu amigo Eduardo Palaio
Lembras-te Eduardo?
ERA INVERNO
Donde ele veio não sabia
Apenas sentia o bater nos vidros
Da janela do meu quarto
-vem brincar – gritou ele a medo
Era inverno e chovia
E à chuva fiquei a saber
Que vinha da Figueira
E contou-me do areal
Das ondas, do mar
E partilhámos a vida
Ali no quintal
Da taberna do ti Alfredo.
(Poema meu do livro maresias)
Éramos putos lembras-te? Quantos anos tínhamos? Não sei, tu
um ano e pouco mais velho do que eu, fizemos “poemas” ali no quintal da taberna
do ti Alfredo, aprendi a pintar contigo, criámos jogos de tabuleiro, organizávamos jogos olímpicos,
fizemos nascer países, o meu era a Míria, o teu já não me lembro, tínhamos
equipas de futebol e campeonatos ,
cortávamos quadradinhos de papel dos folhetos das agências de viagem, tínhamos
jogadores célebres, Esquerdinha duma
equipa tua, Van Doren era o meu craque.
Lembras-te Eduardo? Do Clube Académico do Bairro, o nosso
bairro novo, da rua de cima e da rua de baixo, paralelas e descendo até ao rio?
SEMPRE RIO
Eu não quero navegar
Mas há um rio em mim
Desde a infância
Que me faz olhar o horizonte
O rio entrava-me pelos olhos
Mesmo quando o Sul-expresso
Navegava para Lisboa
Mesmo quando o São Rafael
Partia para a Terra Nova
Que podia eu fazer se a rua
Do meu bairro
Escorregava até ao rio?
Bebi rio e mar e oceano
E as gaivotas não eram
O sinal de tempestade
Que agora se adivinha.
(Poema do meu livro Maresias)
Eu morava na rua de baixo, a Vasco da Gama, tu na rua de
cima, no prédio da oficina do José Marques, e que recordações que eu tenho daí, do Tonecas e do Januário e do José Maria
que moravam no primeiro andar, do Rosas(o vacas) e Luis Vasco filhos do veterinário, e cuja avó a dona Júlia, mais conhecida pela
dona Júlia carrapato (éramos férteis em alcunhas) que nos dava lanche depois
das brincadeiras. E também os lanches na tua casa, quando estiveste doente,
lembras-te Eduardo? E a malta do bairro, quando aos domingos após o futebol dos
tempos do Vitorino, do Tavares (o
macaquinha) do Manel da espanhola, do Lenine, do Manel Cambalacho, do Alfredo Barroqueiro ( quase sempre
barraqueiro), iam para o café do senhor Custódio jogar uma bilharada ou ver a televisão
de canal único e de mesa reservada para o senhor Mata funcionário da Mundet,
corticeira da rua de cima que empregava metade da nossa gente, a outra metade
estava na rua de baixo na Wicânder corticeira sueca. Havia também nestas
percentagens erráticas quem marchasse ou
por outra, navegasse rio acima até Lisboa,
rumo aos armazéns do Chiado, do Grandella, da Casa Africana, da Lanalgo
ou doutros pequenos comércio espalhados pela baixa lisboeta. Não quero esquecer
o Barreiro, da CUF, da CP, da Escola Alfredo
da Silva, do colégio do Seixas, para onde a nossa gente ganhava corpo. E do
nosso bairro, lembras-te Eduardo, do Cândido Câmpia, filho do barbeiro, do
Borruga, do José João “Peyroteu” do
Pocariça, do Nélson Godinho, do Eugénio Godinho, do Fernando ( tuberculoso) , do Carlos Perdigão (senhor
doutor) filho do dono do café golo, ali bem junto ao campo do bravo, onde
outras memórias se avivam. Quantos jogos de futebol de onze, de basquetebol, de
futebol de salão, se fizeram? Lembras-te do Fanoca, do Joel, do José Augusto,
do José António, malta do basquete? E do Quitas, e do Luis Silveira (o sucatas) ? E do onoro,
do clarica, do Necas, do Carvalho, jogadores
da bola do nosso Seixal Futebol Clube ? E cá do bairro levados pelo Hóquei em
patins para o Grupo Desportivo Mundet, o Carlos chagas, o José João Marques, o
meu irmão Carlos Alberto mais conhecido pelo Bétinho ou ainda pelo Velez que
acompanhados pelo grande Leonel, Nhéu o “marreco” atingiram posição de relevo ,
lembras-te Eduardo? O nosso bairro Eduardo, não tinha “Jamaicas” era calmo, acolhedor, escorria para o rio
onde havia fragatas, nadavam golfinhos, nadava a nossa rapaziada na praia dos
tesos. No nosso bairro pelas ruas esguias e compridas vivia o Aníbal sapateiro,
o lugar do Zé borracho, o café do senhor Custódio, a mercearia do senhor Pio, o
largo do chafariz, o café do José António,
o boteco do Francelino, sapateiro e político nos intervalos, que
ensinava esperanto e outras ideias que o levaram mais tarde a outras paragens
do estado novo. Outras ideias que ouvia do senhor Canelas, pai, musicais e não
só, do Bruce, incansável ideólogo do
núcleo de campistas do bairro, do Canelas, filho, o Teodoro, que enveredou mais tarde pela rádio Baía, do Nélson, meu antigo companheiro de viagem para a escola Alfredo da Silva. Lembras-te
Eduardo, do Esmeraldo Carocho, o Lhau,
basquetebolista e guarda-redes das nossas equipas? do Raúl Carocho
defesa do Seixal e dos nossos solteiros
e casados? Do Leopoldo Casanova e do Marimon, e do José Guilherme o”galhetas”, e do Hildefonso, chauffer da Wicânder, pai do João que brincava
comigo e com um Batáglia o tal que vive
em África e está nas bocas do mundo?
Família Batáglia cujo pai era alfaiate, na vila, e onde Fernando, filho
aprendeu o ofício, mas o Carlos, filho também, se virou para outros lados?
Lembras-te do “chibinho” e do grupo “os arrebentas”? E do Adelaidinha, roupeiro
no G,D. Mundet? E do “arre e porra”? E
daqueles que vinham da vila jogar à bola cá para o campo do bravo , o Biau ou o
Porfírio filho do “vai-te-vai-te"? Como posso eu esquecer o menino que veio da
Figueira e me bateu à porta e em Outubro
de 1967 estava no cais da fundição a dar-me um abraço, junto ao navio Niasssa,
quando eu partia para terras de África ?
JÚLIO MIRA