sábado, 15 de fevereiro de 2020


              A PROPÓSITO DA CARTA ABERTA AO ANTÓNIO


Brilhantemente escrita pelo meu amigo Eduardo Palaio
Lembras-te Eduardo?

ERA INVERNO
Donde ele veio não sabia
Apenas sentia o bater nos vidros
Da janela do meu quarto
-vem brincar – gritou ele a medo
Era inverno e chovia
E à chuva fiquei a saber
Que vinha da Figueira
E contou-me do areal
Das ondas, do mar
E partilhámos a vida
Ali no quintal
Da taberna do ti Alfredo.

(Poema meu do livro maresias)
Éramos putos lembras-te? Quantos anos tínhamos? Não sei, tu um ano e pouco mais velho do que eu, fizemos “poemas” ali no quintal da taberna do ti Alfredo, aprendi a pintar contigo, criámos jogos  de tabuleiro, organizávamos jogos olímpicos, fizemos nascer países, o meu era a Míria, o teu já não me lembro, tínhamos equipas de futebol  e campeonatos , cortávamos quadradinhos de papel dos folhetos das agências de viagem, tínhamos jogadores célebres, Esquerdinha  duma equipa tua, Van Doren  era o meu craque.
Lembras-te Eduardo? Do Clube Académico do Bairro, o nosso bairro novo, da rua de cima e da rua de baixo, paralelas e descendo até ao rio?

SEMPRE RIO
Eu não quero navegar
Mas há um rio em mim
Desde a infância
Que me faz olhar o horizonte
O rio entrava-me pelos olhos
Mesmo quando o Sul-expresso
Navegava para Lisboa
Mesmo quando o São Rafael
Partia para a Terra Nova
Que podia eu fazer se a rua
Do meu bairro
Escorregava até ao rio?
Bebi rio e mar e oceano
E as gaivotas não eram
O sinal de tempestade
Que agora se adivinha.

(Poema do meu livro Maresias)
Eu morava na rua de baixo, a Vasco da Gama, tu na rua de cima, no prédio da oficina do José Marques, e que recordações que eu tenho  daí, do Tonecas e do Januário e do José Maria que moravam no primeiro andar, do Rosas(o vacas) e Luis Vasco filhos do veterinário,  e cuja avó a dona Júlia, mais conhecida pela dona Júlia carrapato (éramos férteis em alcunhas) que nos dava lanche depois das brincadeiras. E também os lanches na tua casa, quando estiveste doente, lembras-te Eduardo? E a malta do bairro, quando aos domingos após o futebol dos tempos  do Vitorino, do Tavares (o macaquinha) do Manel da espanhola, do Lenine, do Manel Cambalacho,  do Alfredo Barroqueiro ( quase sempre barraqueiro), iam para o café do senhor  Custódio jogar uma bilharada ou ver a televisão de canal único e de mesa reservada para o senhor Mata funcionário da Mundet, corticeira da rua de cima que empregava metade da nossa gente, a outra metade estava na rua de baixo na Wicânder corticeira sueca. Havia também nestas percentagens erráticas  quem marchasse ou por outra, navegasse rio acima até Lisboa,  rumo aos armazéns do Chiado, do Grandella, da Casa Africana, da Lanalgo ou doutros pequenos comércio espalhados pela baixa lisboeta. Não quero esquecer o Barreiro, da CUF, da CP,   da Escola Alfredo da Silva, do colégio do Seixas, para onde a nossa gente ganhava corpo. E do nosso bairro, lembras-te Eduardo, do Cândido Câmpia, filho do barbeiro, do Borruga, do José João “Peyroteu”  do Pocariça, do Nélson Godinho, do Eugénio Godinho, do Fernando  ( tuberculoso) , do Carlos Perdigão (senhor doutor) filho do dono do café golo, ali bem junto ao campo do bravo, onde outras memórias se avivam. Quantos jogos de futebol de onze, de basquetebol, de futebol de salão, se fizeram? Lembras-te do Fanoca, do Joel, do José Augusto, do José António, malta do basquete? E do Quitas,  e do Luis Silveira (o sucatas) ? E do onoro, do clarica, do Necas,  do Carvalho, jogadores da bola do nosso Seixal Futebol Clube ? E cá do bairro levados pelo Hóquei em patins para o Grupo Desportivo Mundet, o Carlos chagas, o José João Marques, o meu irmão Carlos Alberto mais conhecido pelo Bétinho ou ainda pelo Velez que acompanhados pelo grande Leonel, Nhéu o “marreco” atingiram posição de relevo , lembras-te Eduardo? O nosso bairro Eduardo, não tinha “Jamaicas”  era calmo, acolhedor, escorria para o rio onde havia fragatas, nadavam golfinhos, nadava a nossa rapaziada na praia dos tesos. No nosso bairro pelas ruas esguias e compridas vivia o Aníbal sapateiro, o lugar do Zé borracho, o café do senhor Custódio, a mercearia do senhor Pio, o largo do chafariz, o café do José António,  o boteco do Francelino, sapateiro e político nos intervalos, que ensinava esperanto e outras ideias que o levaram mais tarde a outras paragens do estado novo. Outras ideias que ouvia do senhor Canelas, pai, musicais e não só, do Bruce, incansável  ideólogo do núcleo de campistas do bairro, do Canelas, filho, o Teodoro,  que enveredou mais tarde pela rádio Baía, do  Nélson, meu antigo companheiro de viagem  para a escola Alfredo da Silva. Lembras-te Eduardo, do Esmeraldo Carocho, o Lhau,  basquetebolista e guarda-redes das nossas equipas? do Raúl Carocho defesa do Seixal  e dos nossos solteiros e casados?  Do Leopoldo Casanova  e do Marimon, e do José Guilherme o”galhetas”,  e do Hildefonso,  chauffer da Wicânder, pai do João que brincava comigo  e com um Batáglia o tal que vive em África  e está nas bocas do mundo? Família Batáglia cujo pai era alfaiate, na vila, e onde Fernando, filho aprendeu o ofício, mas o Carlos, filho também, se virou para outros lados? Lembras-te do “chibinho” e do grupo “os arrebentas”? E do Adelaidinha, roupeiro no G,D. Mundet?  E do “arre e porra”? E daqueles que vinham da vila jogar à bola cá para o campo do bravo , o Biau ou o Porfírio filho do “vai-te-vai-te"? Como posso eu esquecer o menino que veio da Figueira e me bateu à porta e em  Outubro de 1967 estava no cais da fundição a dar-me um abraço, junto ao navio Niasssa, quando eu partia para terras de África ?

                                                                                                                         JÚLIO  MIRA