terça-feira, 15 de novembro de 2011

Trás da Ponte - Faz Sentido - Parte 1

                  Conto "Faz Sentido" de Eduardo Palaio
                                         Parte 1

Com algum desconforto aconcheguei-me no sofá,cerrei os olhos
e comecei a narrativa:

"Um espaço estreito,dois homens,um a remexer numa caixa grande
enquanto fala com o outro.Por detrás,uma grande janela com vidros
aos rectângulos pequenos por onde passa uma luz clara,natural.Num
plano recuado, menos iluminado,estou eu a observar.Sabem da minha
presença mas é como se não estivesse.Estamos parece-me numa mar-
quise ou num estúdio.
O homem vai tirando da caixa o que diz ser,ele informa o outro,os res-
tos mortais da esposa: este "outro" tem uma camisa com a fralda por
fora das calças ou então é uma bata, talvez uma bata,tem um ar de
cientista ou de professor ou de sociólogo,só escuta sem fazer comen-
tários.
Espreito a caixa e vejo os ossos,em particular uma tíbia,mas logo a
seguir vou vendo, por cima do ombro daquele que só posso chamar
"o esposo", o resto:
- Isto é o coração,isto é o fígado...- vai ele dizendo.
Os órgãos estão petrificados, impressos em mármore.O coração e tudo
o resto são agora peças em placas, muito brancas, como bocados de
estátua.
Começo a ouvir um canto agradável de pássaro,bem atrás de mim ao
fundo. O homem suspende os gestos na caixa volta-se para trás, não
me pareceu que desse por mim, pelo menos falou sem me olhar:- "Olha
o meu canário!"
Vi o canário, a cantar ao fundo do autocarro. Saltava de bagageira em
bagageira, na parte alta das janelas. A luz desaparecera, era noite. Na
frente do autocarro estávamos os três, o "outro" ocupava-se em conduzir
o autocarro,o corpo sentado agarrando com displicência o volante, o
rosto sem vida,virado para trás.
A marquise dera lugar à parte da frente dum "bus" e a grande janela era
afinal um "pára-brisas".

                                            Continua    

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