sábado, 29 de março de 2014

Trásdaponte - "Os Dez de Tânger"


Na próxima sexta-feira dia 4 de Abril, pelas
18 e 30 horas no Fórum Cultural do Seixal
O Eduardo Palaio vai apresentar o seu livro
"Os Dez De Tânger"
 .
O Eduardo, convida todos os amigos e visitantes
do "Trásdaponte" a estarem presentes.

Entretanto, como, que para abrir o apetite,
transcrevemos uma passagem, relacionada com
a nossa terra.
… Noite perfeita de luar, afastado da margem o Zé do Cadaste lançava a tarrafa procurando pescar a nossa ceia tardia. Disse-me que era época de apanhar bons sáveis e muges. A mulher dele entra na água e junta-se a outra mulher jovem. Ouço-as dizer que a água está quente. Vestem camisas de burel fino, só isso, e a água escorrida, faz o tecido transparente e revela-lhes as carnes apetecíveis. Ao princípio achei estranho que usassem bragas por debaixo. Engano meu, aquelas bragas negras eram fartas pentelheiras que subiam até à covinha do umbigo. Coisa bonita de se apreciar. Não sei se por me terem visto, viraram-se de costas, dão risadinhas, devem fazer de propósito. Mais outras duas em camisa e também de “calções negros” juntam-se às primeiras: baixavam-se como se quisessem apanhar coisa no fundo, mergulhavam os braços e moviam os quadris e arredondavam mais as nádegas, opulentas, na minha direcção. Estava eu nisto, soerguido nos cotovelos, para melhor ver, sem recato algum, quando me surgiu o Zé com a pesca. Por momentos pareceu-me surpreender um olhar estranho, talvez de reprovação pela minha indiscrição. “Queres ir ao banho?” – respondi com mais palavras do que era costume: “de onde eu sou só se toma banho uma vez por ano, e demais levo a vida na água, e se tombar nela, é muito mau sinal. Passa-me aí o almude… do vinho… e esse peixe assado quando é que ele aparece?”
A noite como se anunciava, veio quente assoprada por uma brisa vinda do nascente. Não havia sono, ficámos na conversa por muito tempo.
– Estou a pensar embarcar. No almoxarifado estão a pedir carpinteiros de bordo. Ganha-se melhor e aqui somos muitos e às vezes não há trabalho. Agora eles fazem assim, quando querem fazer um barco novo, em vez de o encomendarem sem mais, como se dantes, não senhor, levantam um “pregão de obras”. E depois vai um genovês e arrebanha a obra, vem com pessoal seu e nós ficamos sem trabalho… – fez uma pausa e retomou a conversa, devagar e baixinho como se falasse consigo próprio – Também é bem feito, já há quem abra o olhos e resmungue: o barato sai caro, são construções que não aguentam mais que uma ou duas viagens de mar, abrem-se todos pelas costuras, é o que dá porem só um cordão…
Depois, de repente, vira-se para mim e pergunta: “já mataste alguém?” – e como eu não lhe respondesse, insistiu: “é que com o mester que tens?...”
– Oh Zé, meu amigo Zé, obrigado por essa de meu mester, muita gente não diria isso acerca do que tenho feito e faço… quanto ao resto sabes, o melhor – deixei correr uma pausa – é não te meteres nisso.
– Lembras-te de me teres perguntado, naquela noite, da última vez que cá estiveste, qual era a melhor nave… daquelas que estavam ali em Santos?
– Sim, lembro, era a “Cais de Rouen”, um barinel de franceses! e o que é que tem?
– No dia seguinte ela foi assaltada e levaram-na, foi logo pouco depois de Cascais, foram vocês não foram?
– Claro, pois! tu próprio disseste que de todas as embarcações aquela era a melhor!
Fomos bebendo e bebendo, mudou-se de assunto e as conversas seguiram, horas passaram. Lembro-me de termos falado muito, se calhar de mais. Às tantas perguntou-me que ideia é que eu tinha de Portugal. “Ideia como?”
– Sim ideia – insistiu ele – tu que és tão viajado deves ter uma ideia, já viste tanto mar e tanta terra, partes de cima, de baixo e dos lados e não sabes como é Portugal?
– Eu não! sei que o Alqueidão da Serra, onde nasci, é numa saída de dois montes que vêm por sítios diferentes, e daí sei ir aonde se constrói o mosteiro e até Leiria era capaz de achar caminho. O resto não sei… sei Lisboa, sei o mar, sei do mar de África, do Algarve, de Veneza, de Génova, da Sicília, mas o que é que queres dizer com isso?
– Assim, olha: aqui é a Arrentella, onde estamos, do outro lado do rio chamam àquilo Amora, para ali onde se põe o sol é o lugar de Corroios e Almada, daquele lado, na direcção de baixo é o Seixal, de onde se sai no Tejo.
– E que é que queres dizer com isso? – “isto!” – e começou, ele que queria ser desenhador de beques, com um graveto a riscar o chão iluminado pela lua – “aqui é onde estamos, depois dou assim uma curva e é a Amora, depois risco por aqui e é o Seixal – levantou o graveto apontou a forma e concluiu – parece uma cabaça. E Portugal como é? é redondo? quadrado? aqui é o mar, para cima e para baixo de Lisboa, isso eu sei, mas faz alguma curva? E para dentro, onde pára a terra, vai até onde? até Alqueidão da Serra? Diz-me, correndo os sítios todos, como se do céu se riscasse o que fica em baixo, que forma tem? de uma ânfora?, de uma pele de cabra esticada? estreita como uma galé ou bojuda como a barca do biscoito?
– Tás mas é grosso! – Excelente que era o vinho do Seixal, de tal gustação que eu o deixei de ver embora tivesse ficado com uma ideia de que a mulher o veio puxar para o leito. Ele foi, pudera. Eu fiquei onde estava, uma espécie de palheiro arruinado, a dois passos da casa. Acho que ainda gritei: “tens para aí alguma mulher dessas de bragas pretas!”…
 
… Fiz um pouco de pressão com a lâmina, deixei que ele visse a morte. Só depois guardei o punhal e devagar fui-me pondo de pé.
Levantou-se também, nem se atrevia a dar um passo, tremia das pernas que dava para ver. Num gesto de raiva olhei a águia que cruzava os ares, armei a besta e rápido disparei um virotão. A águia caiu aos nossos pés, varada, morta antes de se abater na terra. Cuspi-lhe em cima com todas as ganas. Atirei para longe a besta enquanto lhe gritava, apontando a ave morta: “tens muito de praticar para teres pontaria! e tomates também!” − e virei-lhe as costas. O cabrão ainda teve coragem para me gritar: “ Mataste-o, mataste o mestre Nuno?”
– Não matei ninguém, a ordem do capitão foi de mandar todos pela borda fora! – respondi, com olho negro, como se quisesse jurar que tudo fora feito sem piedade…


                Não esqueçam Sexta-feira 4 de Abril  18,30 horas




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