ESTÓRIAS COM GENTE DE TRÁSDAPONTE
de Ângela Piedade
A tablete de chocolate
Hoje não me safo, não há ninguém para brincar, a
Amélia está de castigo e não a deixam sair. Bem pedi à D. Ludovina que a
deixasse brincar comigo, que nós nos portaríamos bem, supliquei, mas a mãe da Amélia
com aquele sorriso de quem gostava de mim, só dizia: _ Não pode ser filha, foi
o pai que a castigou e eu não posso fazer nada. Volta não volta isto acontecia,
a Amélia era rabina e eu não imagino a minha infância sem ela e as suas
peripécias divertidas. Na rua não aparecia ninguém, o que era feito da
Carolina, da Lucinda, da Jacinta, da Tina, da Elsa, ninguém aparecia para
brincar, também estariam de castigo, pensava, naquele tempo não era preciso
muito para que isso acontecesse. Sozinha comecei a jogar ao pesão, na esperança
de alguém querer brincar comigo, qualquer uma servia, brincar sozinha é que
não.
Nisto passa a
minha avó Maria e pergunta-me: _ Ângela Maria queres vir à Cooperativa com a
avó? Cooperativa palavra mágica, o sítio onde comprava os chocolates e outras
guloseimas. A brincadeira estava fraca e logo lhe dei o braço.
Subimos ao
primeiro andar onde estava o Auto-Serviço, algo parecido com o que é hoje um
supermercado, as coisas estavam em prateleiras e eu podia mexer. Corri para a
minha tablete do costume, pequenina com um estampa colorida a que chamávamos de
surpresas e que colávamos nos cadernos da escola. Os rapazes coleccionavam os
cromos dos jogadores de futebol que saíam nos rebuçados e faziam um jogo muito
engraçado em que cuspiam na palma da mão e viravam os cromos que estavam ao
contrário. Chegámos à hora em que estavam a abastecer e a colocar produtos nas
prateleiras, quando no alto do escaparate das guloseimas, aparece sozinha uma
tablete enorme da Regina, era de ficar sem fala, nunca tinha visto uma tablete
tão grande. Puxei a minha avó pela saia, e pedi-lhe: _ Vó, compra-me aquela
tablete, compras não compras? A minha avó viu o preço e com um ar desanimado
retorquiu: _ Não pode ser filha, é muito cara e a avó não trouxe dinheiro que
chegue. Remexi os bolsos e estendi-lhe a mão com alguns tostões e agora vó, já
pode ser? Não chega, isso só dá para aqueles rebuçados de café a meio tostão
cada. Baixei os olhos triste, queria tanto a tablete. A minha avó na sua
generosidade e amor (deu-me de comer à boca até aos 11 anos), decidida: _Vamos
a casa buscar o dinheiro que falta! Tinha o coração aos pulos a caminho da rua
1ª de Dezembro e nunca me lembro de ter subido tão depressa o 3ºandar, casa
onde nasci. Ó vó vamos depressa, podem comprar a tablete, com dificuldade a
minha avó tentava acompanhar o meu passo, quase corria, ela sofria do
coração... cinco escudos custava a tablete e finalmente era minha! Sentei-me à
porta da Cooperativa enquanto a minha avó fazia as compras e conversava com as
comadres. Que tablete deliciosa, tinha uns altos de onde jorrava um líquido
viscoso muito saboroso, nunca tinha comido nada assim. Nisto oiço ao longe a
voz da minha avó, Ângela Maria, Ângela Maria, acorda, a avó tem de ir fazer o
jantar. Ó Maria Matos, a tua neta não está bem, a rapariga não responde, se
calhar apanhou muito sol, colocaram-me a mão na testa para saberem se tinha
febre, andava meningite na terra, a minha avó muito aflita só dizia, valha-me
Deus, nossa Senhora, morreram-me quatro filhos e um deles com meningite ( o meu
pai foi o único sobrevivente), ai minha rica filha e desatou a chorar. Até que
a Sérgia pequenina, tentou pegar-me ao colo e disse: _ a tua neta cheira a
álcool! Tinha o vestido todo sujo do líquido que saiu da tablete. Outra comadre
pegou no que sobrava da tablete e num espanto ao ler o papel retorquiu:_ Ó Mari
Matos, tu foste comprar uma tablete com anis para a tua neta? Coitada da minha
avó, sabia lá que havia tabletes com anis, além disso, era muito míope (16
dioptrias), os olhos negros enormes, pareciam dois pontinhos naqueles óculos.
Leva mas é a rapariga para casa e ela que durma, diziam as comadres. E assim
foi, agarrada à cintura da minha avó, fui cambaleando até casa e dormi. Ao
acordar lá estava a avó Maria, ansiosa a perguntar-me: _ Sentes-te bem filha,
sentes-te bem? E a primeira coisa que eu disse: _Ó vó, onde está a minha
tablete?
Sem comentários:
Enviar um comentário