sábado, 22 de dezembro de 2012

Trásdaponte - Estórias com Gente de Trásdaponte

                                 ESTÓRIAS COM GENTE DE TRÁSDAPONTE

                                                                                    de Ângela Piedade

                                                    A tablete de chocolate


Hoje não me safo, não há ninguém para brincar, a Amélia está de castigo e não a deixam sair. Bem pedi à D. Ludovina que a deixasse brincar comigo, que nós nos portaríamos bem, supliquei, mas a mãe da Amélia com aquele sorriso de quem gostava de mim, só dizia: _ Não pode ser filha, foi o pai que a castigou e eu não posso fazer nada. Volta não volta isto acontecia, a Amélia era rabina e eu não imagino a minha infância sem ela e as suas peripécias divertidas. Na rua não aparecia ninguém, o que era feito da Carolina, da Lucinda, da Jacinta, da Tina, da Elsa, ninguém aparecia para brincar, também estariam de castigo, pensava, naquele tempo não era preciso muito para que isso acontecesse. Sozinha comecei a jogar ao pesão, na esperança de alguém querer brincar comigo, qualquer uma servia, brincar sozinha é que não.
 Nisto passa a minha avó Maria e pergunta-me: _ Ângela Maria queres vir à Cooperativa com a avó? Cooperativa palavra mágica, o sítio onde comprava os chocolates e outras guloseimas. A brincadeira estava fraca e logo lhe dei o braço.

 Subimos ao primeiro andar onde estava o Auto-Serviço, algo parecido com o que é hoje um supermercado, as coisas estavam em prateleiras e eu podia mexer. Corri para a minha tablete do costume, pequenina com um estampa colorida a que chamávamos de surpresas e que colávamos nos cadernos da escola. Os rapazes coleccionavam os cromos dos jogadores de futebol que saíam nos rebuçados e faziam um jogo muito engraçado em que cuspiam na palma da mão e viravam os cromos que estavam ao contrário. Chegámos à hora em que estavam a abastecer e a colocar produtos nas prateleiras, quando no alto do escaparate das guloseimas, aparece sozinha uma tablete enorme da Regina, era de ficar sem fala, nunca tinha visto uma tablete tão grande. Puxei a minha avó pela saia, e pedi-lhe: _ Vó, compra-me aquela tablete, compras não compras? A minha avó viu o preço e com um ar desanimado retorquiu: _ Não pode ser filha, é muito cara e a avó não trouxe dinheiro que chegue. Remexi os bolsos e estendi-lhe a mão com alguns tostões e agora vó, já pode ser? Não chega, isso só dá para aqueles rebuçados de café a meio tostão cada. Baixei os olhos triste, queria tanto a tablete. A minha avó na sua generosidade e amor (deu-me de comer à boca até aos 11 anos), decidida: _Vamos a casa buscar o dinheiro que falta! Tinha o coração aos pulos a caminho da rua 1ª de Dezembro e nunca me lembro de ter subido tão depressa o 3ºandar, casa onde nasci. Ó vó vamos depressa, podem comprar a tablete, com dificuldade a minha avó tentava acompanhar o meu passo, quase corria, ela sofria do coração... cinco escudos custava a tablete e finalmente era minha! Sentei-me à porta da Cooperativa enquanto a minha avó fazia as compras e conversava com as comadres. Que tablete deliciosa, tinha uns altos de onde jorrava um líquido viscoso muito saboroso, nunca tinha comido nada assim. Nisto oiço ao longe a voz da minha avó, Ângela Maria, Ângela Maria, acorda, a avó tem de ir fazer o jantar. Ó Maria Matos, a tua neta não está bem, a rapariga não responde, se calhar apanhou muito sol, colocaram-me a mão na testa para saberem se tinha febre, andava meningite na terra, a minha avó muito aflita só dizia, valha-me Deus, nossa Senhora, morreram-me quatro filhos e um deles com meningite ( o meu pai foi o único sobrevivente), ai minha rica filha e desatou a chorar. Até que a Sérgia pequenina, tentou pegar-me ao colo e disse: _ a tua neta cheira a álcool! Tinha o vestido todo sujo do líquido que saiu da tablete. Outra comadre pegou no que sobrava da tablete e num espanto ao ler o papel retorquiu:_ Ó Mari Matos, tu foste comprar uma tablete com anis para a tua neta? Coitada da minha avó, sabia lá que havia tabletes com anis, além disso, era muito míope (16 dioptrias), os olhos negros enormes, pareciam dois pontinhos naqueles óculos. Leva mas é a rapariga para casa e ela que durma, diziam as comadres. E assim foi, agarrada à cintura da minha avó, fui cambaleando até casa e dormi. Ao acordar lá estava a avó Maria, ansiosa a perguntar-me: _ Sentes-te bem filha, sentes-te bem? E a primeira coisa que eu disse: _Ó vó, onde está a minha tablete?


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