domingo, 22 de março de 2020

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                                   Uma leitura para os tempos de reclusão


Acorda quando o fim da noite espreita o começo do dia. A paisagem descobre-se como se houvesse no exterior um abat-jour, mal atarraxado, descaído para o lado esquerdo da posição onde tem os olhos. Vive sozinho, no n.º 26 da Av. Marginal, no Seixal. Dorme num beliche que montou na sala que se abre para o amplo horizonte.
Agora a luz transporta fulgores de amarelo, à medida que se rompe o horizonte do Montijo e de Alcochete, por entre o violeta e o anil até atingir Lisboa. Acende-se um semicírculo na cúpula do Panteão, depois clareia-lhe uma empena do mesmo lado, de seguida o torreão da Igreja de São Vicente de Fora. De caminho o sol ilumina o Miradouro de Santa Luzia, as Portas-do-Sol, o alto da Graça. Nos bastidores ainda é noite: Fanhões, Lousa, Malveira, a serra.
Faróis de viaturas riscam o que sobra da noite e iluminam os primeiros marchadores: uns correm felizes só por isso, outros fazem caminho para o horário do primeiro ferry do dia. Gente corajosa que em tempos de “peste” se vai misturar numa qualquer multidão, uns de máscara outros de luvas, alguns completos. Um parece-lhe ter a cabeça escondida num equipamento de mergulho: vê-se o tubo de respiração.

O decretado Estado de Emergência tem-lhe estragado as rotinas que se caracterizam, oh! paradoxo, pela sua imprevisibilidade. O morador do 7.ºA lamenta a falta de mobilidade que lhe é imposta. Ainda ontem se viu interrogado por um polícia vitimado por excesso de zelo: “aonde é que vai? Sabe que as pessoas da sua idade devem observar o que foi expressamente determinado…”. Devo estar com uma cara estragada, pensou: tudo por causa dos whatsapp que invadiram o prédio do rés-do-chão ao sétimo piso, tanta gente solidária, tantas comissões informais organizadas por piso eu já
lavei duas vezes o andar e os botões do elevador quatro vezes… Com tanta comunicação ficou evidente que só ele não limpou nada, ele e também a que mora no 6.ºA, uma mulher jovem, recém-chegada ao condomínio, que vive, pelo que deu para perceber em tão pouco tempo, ora sozinha ora acompanhada.

O morador do 7.ºA tem vaidade na sua aparência. Amigos dizem-lhe é pá não te fazes velho! (julga aparentar cinquenta e poucos, menos vinte do que descreve o BI vitalício que ele diz ser imortalício). Às vezes numa loja ultrapassa a fila de clientes, como se fosse fazer uso do privilégio da idade. O senhor está a passar à frente dos outros, não vê! Ah! então mostre lá o cartão de cidadão ou o BI, ah! não o tem consigo então tenha paciência e vá lá para trás!. Ninguém lhe dá a idade dos ossos. Com a dificuldade actual para se fazer compras e o perigo dos ajuntamentos e dos açambarcamentos receia não conseguir renovar o stock de tinta para o cabelo.

Ainda há dois dias se deslocou para longe, a pé, e ninguém o travou ao abrigo da limitação de circulação de idosos. Foi à loja do chinês só para se regozijar com a falta de clientes. Mesquinho e invejoso lembra-se do proprietário, uma excelente criatura, ter morada no prédio, acomodado à condição de condómino; depois comprou uma vivenda enorme, o que encontrou de mais parecido com um pagode chinês, semelhante a uma mansão da Louisiana dos tempos da escravidão sulista nos campos de algodão e tabaco.

De profissão, vive da escrita: no momento tem os pensamentos ocupados na descrição de uma personagem feminina cujos contornos ainda não estão definidos. De preciso só sabe que deve ostentar uns seios magníficos. Seios?! também se pode escrever, conforme o estilo escolhido, mamas, mamocas, maminhas e assim outras de que é apropriado dizer-se: peitos, tem uns peitos…
Como não tencionava voluntariar-se para as limpezas, afixou um letreiro no elevador a oferecer-se para passear os cães domésticos, revelando ser ele o
anónimo que desde há dois invernos abastece duas vasilhas à entrada da garagem, uma para a comida liofilizada para gatos outra para a água; e os pombos oportunistas também desse modo são abastecidos.

Estava a colar a informação quando o elevador se parou no 6.ºA, e a bela condómina fez menção de entrar, ele balbuciou em voz muda se não seria mais aconselhado viajar-se à vez. Ela leu-lhe os pensamentos, entrou e disse “a mim nada me afecta” a acompanhar o gesto. E que gesto! para ilustrar a declaração: de mãos ambas, rápidas, de dedos abertos rodeou os seios. “Aqui, não entra vírus”. Trata-se sem dúvida de uma criatura virulenta e destemida e atrevida. “O senhor é o que está por cima de mim…no sétimo A?”, perguntou, maliciosa.
O habitante do 7.ºA, encontrou no andar de baixo o modelo que tanto procurava. Uma mulher assim com os seios de formato só possível de ser encontrado num pomar. Maminhas da dimensão de pêssegos mas em modo mais alongado como é o feitio das papaias ou de azeitonas, em apresentação miniaturizada. Esta é uma especulação da anatomia feminina criada pela imaginação do morador do 7.ºA. Perfeccionista que é, finalmente alcançou a completa descrição física de todas as personagens. No cérebro febril, as ideias materializaram-se e adensaram-se, tem a cabeça cada vez mais pesada.

O tempo melhorou, faz calor e a vizinha do 6.ºA exibe-se num decote deslumbrante. O vizinho do 7.ºA sabe das horas em que ela vem para a varanda beber o café. Depois do jantar, a luz da varanda acesa, um plateau, só com a levíssima indumentária com que se irá deitar. Irresistível! Ele chega-se ao varandim, só lhe vê os pés descalços a unhas pintadas de madrepérola, está recostada fora do alcance dos olhos do andar de cima, está distraída. O hábito é estar chegada à frente conhecedora da mal disfarçada indiscrição do vizinho.
O homem do 7.ºA está de bom humor, tem passeado os cães, anda livremente por todo o lado, ninguém lhe pede os documentos ou o inquire de razões para tão demoradas passeatas, já garantiu o restaurador da cor do cabelo pelo tempo que se prevê que dure a pandemia. Em casa, na sala, trabalha com um alto rendimento, as páginas de escrita sucedem-se. Tantas ideias, a coisa ascendeu do mesencéfalo, ocupou o diencéfalo, o lobo temporal ultrapassou o corpo caloso, depois o sulco cingulado e comprimiu todo o córtex central. Um peso enorme.

Um intervalo recreativo, vai para a varanda, debruça-se (com a cabeça tão pesada mas tão pesada)
ao estender o pescoço mais um pouco na tentativa de os olhos alcançarem os seios da vizinha, baldeia o varandim, passa pelo sexto andar da descarada, pelo quinto do senhor juiz Albergaria, pelo quarto do engenheiro Rudolfo da ASAE pelo terceiro do jurista Nicolau Soares pelo segundo do Cardoso oficial de Marinha pelo primeiro do fiscal de finanças, esborracha-se na calçada; no fim, no derradeiro instante, morto; despojado das ideias, só lhe resta uma vaga memória do rés-do-chão.

No noticiário da noite deu-se notícia de uma vítima indirecta do Covid19, um homem, morador no Seixal, aparentando cinquenta anos, suicidou-se atirando-se do sétimo andar, deprimido pelo receio da contaminação

Eduardo Palaio
                                                                     

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